Leia, na íntegra, a nota pública divulgada pela Aliança.
Diante do recente resgate de mais de 200 pessoas da condição análoga à de escravo na cadeia produtiva da viticultura na região de Bento Gonçalves (RS) e, considerando a nota pública veiculada pelo Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves, a Aliança pelos Direitos Humanos em Cadeias Produtivas (Aliança) vem a se pronunciar.
Inicialmente, cabe esclarecer que a Aliança é um coletivo constituído por 18 organizações da sociedade civil, trabalhadores e trabalhadoras rurais assalariadas e assalariados e a agricultura familiar comprometidos com o objetivo de promover e consolidar o tema do respeito aos direitos humanos em cadeias produtivas alimentares no Brasil, refletindo sobre soluções de melhoria e promoção dos direitos humanos e trabalhistas no trabalho urbano e rural. Dentro da sua missão, a Aliança tem o objetivo de fomentar a implementação de mecanismos de devida diligência em direitos humanos em cadeias produtivas brasileiras, tema esse que possui estreita conexão com os fatos relacionados acima.
As discussões sobre a devida diligência em direitos humanos nas cadeias produtivas ganharam peso na última década, especialmente desde o lançamento dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU (POs), em 2011, pelo professor John Ruggie. Juntamente com as Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais e a Declaração MNE da Organização Internacional do Trabalho, no qual o Brasil é um dos países signatários. Esses instrumentos constituem uma estrutura progressiva em que a conduta empresarial responsável não é apenas uma questão ética, mas uma base para a operação da economia na sociedade moderna.
Também necessária, mas não suficiente para evitar abusos, a promulgação de soft e hard laws em diversos países do mundo inaugura um novo e importante marco legal, que se concentra na redefinição das responsabilidades, papéis e prestação de contas do setor privado nesse contexto.
Dentro dessa perspectiva, o dever de devida diligência impõe ao setor privado a obrigação de estabelecer processos de governança empresarial capazes de proteger e promover os direitos humanos. Isso inclui, por exemplo, a necessidade de identificar, prevenir, mitigar e tomar responsabilidade por abusos aos direitos humanos que ocorram ao longo de toda a cadeia produtiva, incluindo fornecedores e subcontratados, principalmente aqueles e aquelas que estão nas bases de suas cadeias, como no caso ocorrido, trabalhadores e trabalhadoras rurais.
No caso de Bento Gonçalves, os fatos indicam que vinícolas brasileiras subcontrataram empresas terceirizadas para realização de parte do processo de viticultura. Para tanto, recorreram à mão-de-obra migrante para compor a força de trabalho e acabaram por submeter trabalhadores e trabalhadoras a condições de trabalho inaceitáveis.
Segundo a Inspeção do Trabalho, as violações ao trabalho decente foram sistemáticas e de tal forma que todos os elementos do tipo penal brasileiro que configuram o crime de trabalho em condição análoga à de escravo estavam presentes: trabalho forçado, servidão por dívida, jornada exaustiva e condições degradantes. Restaram lesados, portanto, tanto a liberdade como a dignidade das pessoas que foram resgatadas.
Quando consultadas, as vinícolas envolvidas alegaram desconhecimento das violações que eram praticadas em sua cadeia produtiva e relegaram a responsabilidade às suas subcontratadas, bem como se escusaram em torno de alegações que colocam a centralidade do problema na política nacional de proteção social.
No entanto, estudos apontam que programas sociais como o Bolsa Família não induzem uma queda na busca por emprego; pelo contrário, servem como uma alavanca para que seus beneficiários tenham condições mínimas para a efetivação da procura de forma digna e com maiores oportunidades.
Dentre as alegações também externadas pelas vinícolas, afirmou-se que os empregadores do setor enfrentam desafios relacionados à escassez de mão-de-obra para a realização dos trabalhos no campo. Contudo, sabe-se que, atualmente, as maiores dificuldades presentes no campo se dão em encontrar postos de trabalho que paguem salários-mínimos ou até mesmo dignos e que cumpram a legislação trabalhista, assim como a NR 31. Vale ressaltar também que muitos trabalhadores e trabalhadoras são abordados com falsas promessas de trabalho, muitas vezes realizadas por intermediários como forma de atração para trabalhos que apresentam baixas condições ou nenhuma para o seu exercício.
Os POs da ONU são expressos no sentido de que a responsabilidade de respeitar os direitos humanos exige que as empresas a) evitem que suas próprias atividades (seja por ação ou omissão) gerem impactos negativos sobre direitos humanos ou para estes contribuam, bem como enfrentem essas consequências quando vierem a ocorrer; b) busquem prevenir ou mitigar os impactos negativos sobre os direitos humanos diretamente relacionadas com operações, produtos ou serviços prestados por suas relações comerciais, inclusive quando não tenham contribuído para gerá-los. Essa é a conduta mínima esperada das empresas em relação aos direitos humanos.
Além disso, para cumprir com sua responsabilidade de respeitar os direitos humanos, as empresas devem contar com políticas, práticas empresariais e procedimentos apropriados em função de seu tamanho e circunstâncias, incluindo, para isso, processos eficazes e efetivos de devida diligência em matéria de direitos humanos (DDDH).
No mesmo sentido, vigoram atualmente legislações internacionais que obrigam as empresas a implementar medidas relacionadas à DDDH em suas cadeias produtivas e estabelecem punições pelo seu descumprimento. Exemplos em âmbito internacional incluem o Modern Slavery Act do Reino Unido, a Lei nº 399 da França e o Supply Chain Due Diligence Act da Alemanha. Por sua vez, em âmbito nacional, cabe destacar a importante tramitação do PL 572/22 (que cria o Marco Nacional sobre Direitos Humanos e Empresas e estabelece diretrizes para a promoção de políticas públicas no tema), bem como as recentes discussões para a adoção de um Plano de Ação Nacional sobre Empresas e Direitos Humanos.
Com base em tudo quanto exposto, a Aliança conclama para que haja uma efetiva tomada de responsabilidade por parte dos agentes envolvidos no caso de Bento Gonçalves, seja esta responsabilização jurídica quanto também pautada na conduta empresarial responsável. Clama, ainda, para que o governo brasileiro priorize o fortalecimento das políticas públicas de combate ao trabalho escravo, incluindo a Lista Suja, a consolidação e disseminação do Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas e a garantia de dotação orçamentária específica e suficiente para a o desempenho da Inspeção do Trabalho.
Somente na integração entre a ordem econômica e a valorização do trabalho é que o país pode prosperar sem deixar ninguém para trás.